Aprendendo uma lição com Stephen King*



Stephen King acordou meio atordoado. Sentiu sua cabeça pesar oitenta quilos. Estava amarrado pelos braços e pelas pernas em uma cama. Sua boca estava lacrada com uma fita adesiva. O corpo doía demais. Ainda que, quando estava na sua casa de veraneio, costumasse caminhar seis quilômetros por dia, a sua carcaça não era mais a de um homem de trinta anos.

Ao se sentir um pouco melhor, enxergou um homem sentado na cadeira em frente à cama. Parecia ter a idade que ele próprio tinha ao escrever Cão Raivoso. Seu cabelo e sua barba eram levemente grisalhos. O sujeito até a cama e arrancou a fita da sua boca.

 — Vejo que acordou, sr. King — disse, sentando-se novamente.
            — Onde eu estou?
            — Garanto que está em um local seguro. E afastado. Então não adianta gritar.
            — Por que me prendeu?
            — Você sabe.
            — Jesus Cristo!, eu já disse que não vou mais ler essa droga.
            Stephen King se referia ao calhamaço em cima do criado-mudo, que olhava para ele como se fosse o demônio.
            — Vai ler, sim. Já que não vai por bem, vai por mal.
            — Se eu fosse você, jogaria essa merda no lixo.
            O sujeito foi até a cama e deu um tapa na cara de King. Foi um tapa estalado, obsceno.
            — Como você pode dizer isso? Foi inspirado em toda a sua obra.
            — Nestes momentos eu penso que deveria ter seguido trabalhando na lavanderia ao invés de virar escritor. Deus, por que deixei que Tabitha resgatasse o manuscrito de Carrie no lixo?
            — Muito espertinho, Mister King. Pensando bem, o senhor não escreve tão bem assim.
            — Pelo menos eu não gosto dos advérbios.
            — Como disse?
            Dito isso, o sujeito apontou para King uma faca de açougueiro novinha em folha.
            — Como é o seu nome mesmo?
            — Jeremias. Jeremias Soares.
            — Jeremias, se você quer escrever algo que não mereça a lata do lixo, comece não se esquecendo daquilo que escrevi em Sobre a Escrita: o advérbio não é amigo dos escritores. — Apontou para o calhamaço. — Aquilo ali é cheio deles.
            — Pode pelo menos chamar aquilo de livro?
            — Pode até ser livro... mas fique sabendo que perto dele Crepúsculo se torna o melhor obra de toda a história.
            Jeremias levantou-se da cadeira com um safanão e levou a faca até o pescoço do escritor norte-americano.
            — Pois agora eu vou matá-lo lentamente... horrendamente... Que tal, inapelavelmente?

            Jeremias sentiu uma mistura de emoções ao deixar a casa abandonada. Não queria matar King. Como poderia? King era o seu autor favorito. No entanto, ele ousara comparar a sua obra-prima com Crepúsculo! Pois bem, que agora as autoridades tratassem de montar as peças do cadáver para o velório.
            O assassino entrou no seu Palio Fire assobiando, tentando fingir que estava tudo bem.
            Não rodou nem dois quilômetros na rodovia quando viu um carro vermelho se agigantar no retrovisor. Jeremias conhecia aquele carro. Um Plymouth Fury 1958 vermelho com detalhes brancos.
            Céus, não pode ser!
            Sim, era ele, ou melhor, ela.
            Christine...
            Saltando no seu caminho como um palhaço que pula da caixa em uma mola, Christine não teve a menor a dificuldade em tirar o Palio da rodovia. O carro de Jeremias foi direto na direção de uma árvore, chocando-se com um estouro. O airbag foi acionado e por sorte o assassino não morreu. Mas quis ter morrido. Sabia muito bem o que o esperava. Havia lido Christine três vezes.
            Ao invés de correr pela rodovia, Jeremias resolveu se embrenhar na mata. Porém, Christine disparou atrás dele, lavrando a terra como se fosse um trator. Jeremias ouviu o motor roncar nas suas costas. Sentiu o arrepio derradeiro. Antes de ser atingido, olhou para trás. Stephen King estava no volante.
            Christine avançou sobre a sua vítima. Passou por cima dela com voracidade. Foi e voltou algumas vezes. Somente tomou o rumo da estrada quando aquela coisa que estava perto da árvore não era mais do que um patê humano. Um patê que somente poderia ser recolhido pelas autoridades com uma pá.
 
 
*Conto finalizado em 31/3/2017, em uma atividade proposta pelo prof. Altair Martins, no curso de Escrita Criativa da PUC/RS. A atividade se chamava "projeto gerúndio" e consistia em escrever uma narrativa na qual o aluno convivia com o escritor de sua preferência. Desculpe, Stephen King, mas não encontrei melhor forma de homenageá-lo.