ENSAIO: QUANDO O LIVRO NÃO É MELHOR QUE A SUA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA

ENSAIO
Quando o livro não é melhor que a sua adaptação cinematográfica*

Em 1896, Trilby, livro do francês George du Maurier, se tornou a primeira obra literária adaptada para o cinema. Desde então, centenas de outros livros também ganharam as telonas. Com isso, muitas vezes é suscitada a discussão: qual é melhor, o livro ou sua adaptação cinematográfica?

Primeiramente, excluiremos os filmes que são ruins por natureza. Vamos ficar naqueles que são bons e acabam honrando os livros que os originaram. Mas, ao iniciar qualquer comparação, é necessário ir até as raízes da questão e ver um pouco da teoria.

Antes de ver o filme pronto, precisamos enxergar o seu roteiro, que nada mais é do que a absorção de um texto original, transformado em outro. Assim, é necessário buscar as palavras de Tania Carvalhal no livro Literatura Comparada: “O processo de escrita é visto, então, como resultante também do processo de leitura de um corpus literário anterior. O texto, portanto, é absorção e réplica a outro texto (ou vários outros)”. Também se apropriando de uma teoria presente na obra de Carvalhal, estabelecemos um livro como “invenção” e o roteiro cinematográfico como sua “imitação”.

Tendo em vista estas informações, o principal problema que os filmes enfrentam é justamente manter a fidelidade em relação ao texto original. Evidentemente é impossível transpor com perfeição um romance de quatrocentas ou quinhentas páginas para um filme de duas horas de duração. Muitas informações precisam ser extinguidas ou condensadas, inevitavelmente alterando o sentido original do texto. Também é preciso lembrar que a fidelidade ao texto original nem sempre é o objetivo do roteirista. O conceito de “adaptação” não torna obrigatória a tradução para os cinemas daquilo que está escrito em um livro. Vejamos a seguinte passagem de Literatura Comparada: “...um texto resgata outro texto anterior, apropriando-se dele de alguma forma (passiva ou corrosivamente, prolongando-o ou destruindo-o)”.

No entanto, ao sair das relações intertextuais, encontramos outra desvantagem nos filmes. Os livros trabalham com a imaginação dos leitores, possibilitando infinitas possibilidades. Por mais que o diretor de uma adaptação acerte o tom da obra e consiga — através de imagens, efeitos sonoros e atuações — emular a essência do livro, dificilmente vai superar as imagens que o leitor forma no ato da leitura.

Precisamos ainda elencar a última desvantagem do cinema: o público na maior parte das vezes lê o livro antes de ver o filme. Logo, acaba tendo o livro como a primeira referência de determinada história.

Após falar sobre a regra, passaremos para as exceções. O que faz um filme ser melhor que o livro que o originou? Geralmente os motivos que servem para um caso não servem para outro. Por isso, escolhi três filmes que, conforme minha preferência pessoal, superam os livros que os inspiraram. Vamos ver aquilo que os tornam melhores.

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Carrie, a Estranha
Escrito em 1974 por Stephen King e adaptado em 1976 por Brian de Palma

Carrie foi o primeiro romance de Stephen King e também o primeiro a ser adaptado para o cinema. A direção do longa coube a Brian De Palma, sendo que o roteiro foi escrito por Lawrence D. Cohen. A primeira coisa que se deve afirmar sobre a adaptação é que ela manteve a ideia original do autor — e isso é muito importante, visto que o argumento de King era fantástico.

Mas algo que devemos observar sobre o romance de King é que ele mostra o escritor como um artista em formação. Os personagens desta narrativa ainda não atingiam a profundidade dos livros seguintes – e King é conhecido justamente por dar muita profundidade aos personagens.

Já no filme, por causa do roteiro e da expressão/carisma dos atores, encontramos personagens com mais nuances. Dificilmente a imagem que os leitores formaram da Carrie no livro supera aquela que a atriz Sissy Spacek emprestou para a personagem. Ou podemos falar do personagem Billy Nolan, que na interpretação de John Travolta ganhou uma presença que a sua versão literária não conquistou.




O roteiro de Cohen, ainda que tenha respeitado as ideias de King, trouxe mudanças significativas no ato final. Em linhas gerais, os personagens tiveram os mesmos desfechos, porém de formas diferentes. As alterações de Cohen tornaram tudo mais impactante. Com isso, vemos aplicada outra ideia presente em Literatura Comparada: “Toda repetição está carregada de uma intencionalidade certa: quer dar continuidade ou quer modificar, quer subverter, enfim, quer atuar com relação ao texto antecessor. A verdade é que a repetição, quando acontece, sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o e (por que não dizê-lo) o reinventa”.

Outro diferencial do filme está no talento incontestável de Brian de Palma. As cenas emblemáticas do filme — a primeira menstruação de Carrie, o baile de formatura e o embate final entre a personagem central e sua mãe — viraram poesia graças ao jogo das câmeras com a trilha sonora. Neste momento, chegamos a um aspecto interessantíssimo do cinema: o talento dos atores, as imagens e o som são elementos que podem modificar toda uma narrativa. O roteiro de Carrie, a Estranha lido em voz alta evidentemente não deve trazer o mesmo resultado que a obra finalizada por Brian De Palma.

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O Planeta dos Macacos
Escrito por Pierre Boulle em 1963 e adaptado em 1968 por Franklin J. Schaffner

O livro conta a história de Uylsse Mérou, um jornalista a bordo de uma nave que pousa em um planeta dominado por macacos falantes e civilizados. O cerne deste enredo está presente no filme — dirigido por Franklin J. Schaffner e roteirizado por Michael Wilson e Rod Serling —, todavia, as mudanças foram muito significativas. A principal delas está no personagem central. Ulysse Mérou foi substituído pelo astronauta americano George Taylor. A alteração foi além do nome; os personagens são completamente diferentes. No livro, os macacos vivem em cidades tecnológicas e possuem o seu próprio idioma, enquanto no filme eles falam inglês e moram em uma cidade primitiva.

Tais mudanças tornam o livro e o filme quase histórias independentes, ao contrário dos outros exemplos utilizados neste ensaio. Vemos a consolidação de outra ideia de Literatura Comparada: “Toda apropriação é, em suma, uma ‘prática dissolvente’”. Ou seja, o roteiro de Michael Wilson e Rod Serling perverte a história de Pierre Boulle. O filme é muito mais tenso e violento, desenvolvendo-se em um ritmo veloz. George Taylor é visto como inimigo pelos macacos o tempo todo. Enquanto isso, o livro corre mais lento, mantendo a linha da sátira e do bom humor, destacando o absurdo que seria macacos agindo e se vestindo como humanos.

Até aí, o livro e o filme se equiparam. Se a adaptação contou com excelente ambientação, o talento de Charlton Heston e a maquiagem premiada de John Chambers, o livro se valeu de um texto deliciosíssimo de ler.




Então, o que tornou o filme de fato melhor? Resposta: o final.

A solução encontrada por Pierre Boulle foi impressionante: ao engravidar uma humana nativa do planeta, Ulysse se tornou alvo dos macacos, que decidem exterminar o casal e o bebê. Ao voltar para a Terra, o personagem descobre que o nosso planeta também foi dominado pelos macacos. Porém, o roteiro do filme ousou mais: colocou os personagens o tempo inteiro em uma versão futura da Terra, jogando nos homens a culpa pela destruição da civilização humana e a ascensão dos símios. Se não é possível afirmar que a solução encontrada pelos roteiristas foi a mais inteligente, devemos reconhecer que ela é muito mais corajosa e pujante. Foi uma tapa na cara do público que foi aos cinemas no final da década de sessenta.

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À Espera de um Milagre
Escrito por Stephen King em 1996 e adaptado em 1999 por Frank Darabont

Basta ler o livro e na sequência ver o filme para perceber que a intenção de cineasta foi se manter fiel à obra original. Retomando um dos ensinamentos do livro de Tania Carvalhal, que mencionei no início do ensaio, Darabont, que também escreveu o roteiro do longa, apropriou-se do livro de King de uma forma mais passiva, prolongando-o ao invés de destruí-lo. Para garantir a fidelidade ao romance de mais de quatrocentas páginas, acabou rodando um filme com incríveis três horas de duração. Provavelmente é por causa disso que o filme foi indicado para o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado.

Temos um livro e filme com narrativas extremamente semelhantes, inclusive nos diálogos. Então, como podemos determinar que o filme é melhor? No fundo, o sonho de todo leitor é ver no cinema a materialização quase perfeita do seu livro favorito. E esse foi um anseio que Frank Darabont conseguiu realizar.



Mas a consumação do sonho dos leitores não é o único mérito do filme. Darabont soube escolher os atores certos para cada personagem. Todos honraram as “pessoas” escritas por Stephen King. Daí precisamos nominar o ator Michael Clarke Duncan, que interpretou John Coffey. Este personagem é simplesmente um dos maiores da história do cinema. Duncan compôs uma figura de altíssima carga emocional. Presenciamos o momento onde um único ator é capaz de mudar o resultado de uma narrativa com o seu talento. A hora final do filme é capaz de amolecer até mesmo os corações mais endurecidos; tudo graças à atuação inesquecível do elenco. Não que o livro não seja comovedor; a questão é que Darabont tirou da sua equipe um desempenho fenomenal.

Referências
Livros
Literatura Comparada, de Tania Carvalhal – Editora Ática
Carrie, de Stephen King – Editora Objetiva
O Planeta dos Macacos, de Pierre Boulle – Editora Exilado dos Livros
À Espera de um Milagre, de Stephen King, Editora Objetiva

Filmes
Carrie, a Estranha (1976)
O Planeta dos Macacos (1968)

À Espera de um Milagre (1999)

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* Ensaio originalmente escrito para a cadeia de Teorias da Narrativa, no Curso Superior de Tecnologia em Escrita Criativa (PUC/RS)

Aprendendo uma lição com Stephen King*



Stephen King acordou meio atordoado. Sentiu sua cabeça pesar oitenta quilos. Estava amarrado pelos braços e pelas pernas em uma cama. Sua boca estava lacrada com uma fita adesiva. O corpo doía demais. Ainda que, quando estava na sua casa de veraneio, costumasse caminhar seis quilômetros por dia, a sua carcaça não era mais a de um homem de trinta anos.

Ao se sentir um pouco melhor, enxergou um homem sentado na cadeira em frente à cama. Parecia ter a idade que ele próprio tinha ao escrever Cão Raivoso. Seu cabelo e sua barba eram levemente grisalhos. O sujeito até a cama e arrancou a fita da sua boca.

 — Vejo que acordou, sr. King — disse, sentando-se novamente.
            — Onde eu estou?
            — Garanto que está em um local seguro. E afastado. Então não adianta gritar.
            — Por que me prendeu?
            — Você sabe.
            — Jesus Cristo!, eu já disse que não vou mais ler essa droga.
            Stephen King se referia ao calhamaço em cima do criado-mudo, que olhava para ele como se fosse o demônio.
            — Vai ler, sim. Já que não vai por bem, vai por mal.
            — Se eu fosse você, jogaria essa merda no lixo.
            O sujeito foi até a cama e deu um tapa na cara de King. Foi um tapa estalado, obsceno.
            — Como você pode dizer isso? Foi inspirado em toda a sua obra.
            — Nestes momentos eu penso que deveria ter seguido trabalhando na lavanderia ao invés de virar escritor. Deus, por que deixei que Tabitha resgatasse o manuscrito de Carrie no lixo?
            — Muito espertinho, Mister King. Pensando bem, o senhor não escreve tão bem assim.
            — Pelo menos eu não gosto dos advérbios.
            — Como disse?
            Dito isso, o sujeito apontou para King uma faca de açougueiro novinha em folha.
            — Como é o seu nome mesmo?
            — Jeremias. Jeremias Soares.
            — Jeremias, se você quer escrever algo que não mereça a lata do lixo, comece não se esquecendo daquilo que escrevi em Sobre a Escrita: o advérbio não é amigo dos escritores. — Apontou para o calhamaço. — Aquilo ali é cheio deles.
            — Pode pelo menos chamar aquilo de livro?
            — Pode até ser livro... mas fique sabendo que perto dele Crepúsculo se torna o melhor obra de toda a história.
            Jeremias levantou-se da cadeira com um safanão e levou a faca até o pescoço do escritor norte-americano.
            — Pois agora eu vou matá-lo lentamente... horrendamente... Que tal, inapelavelmente?

            Jeremias sentiu uma mistura de emoções ao deixar a casa abandonada. Não queria matar King. Como poderia? King era o seu autor favorito. No entanto, ele ousara comparar a sua obra-prima com Crepúsculo! Pois bem, que agora as autoridades tratassem de montar as peças do cadáver para o velório.
            O assassino entrou no seu Palio Fire assobiando, tentando fingir que estava tudo bem.
            Não rodou nem dois quilômetros na rodovia quando viu um carro vermelho se agigantar no retrovisor. Jeremias conhecia aquele carro. Um Plymouth Fury 1958 vermelho com detalhes brancos.
            Céus, não pode ser!
            Sim, era ele, ou melhor, ela.
            Christine...
            Saltando no seu caminho como um palhaço que pula da caixa em uma mola, Christine não teve a menor a dificuldade em tirar o Palio da rodovia. O carro de Jeremias foi direto na direção de uma árvore, chocando-se com um estouro. O airbag foi acionado e por sorte o assassino não morreu. Mas quis ter morrido. Sabia muito bem o que o esperava. Havia lido Christine três vezes.
            Ao invés de correr pela rodovia, Jeremias resolveu se embrenhar na mata. Porém, Christine disparou atrás dele, lavrando a terra como se fosse um trator. Jeremias ouviu o motor roncar nas suas costas. Sentiu o arrepio derradeiro. Antes de ser atingido, olhou para trás. Stephen King estava no volante.
            Christine avançou sobre a sua vítima. Passou por cima dela com voracidade. Foi e voltou algumas vezes. Somente tomou o rumo da estrada quando aquela coisa que estava perto da árvore não era mais do que um patê humano. Um patê que somente poderia ser recolhido pelas autoridades com uma pá.
 
 
*Conto finalizado em 31/3/2017, em uma atividade proposta pelo prof. Altair Martins, no curso de Escrita Criativa da PUC/RS. A atividade se chamava "projeto gerúndio" e consistia em escrever uma narrativa na qual o aluno convivia com o escritor de sua preferência. Desculpe, Stephen King, mas não encontrei melhor forma de homenageá-lo.