Prólogo e primeiro capítulo de "O Sobrado da Rua Velha"


Prólogo

A morte é um mistério e as pessoas, por causa do senso de sobrevivência, costumam evitá-la. Todavia, há algumas exceções.
O motorista do Passat 79 sabia que precisava morrer. A sua esposa, que estava sentada no banco do carona, deveria sofrer o mesmo destino. Após examinar inúmeras maneiras de acelerar este processo, ele se viu capturado pela indecisão. Tirar a própria vida, além de exterminar a da pessoa amada, não era uma tarefa fácil para um camarada reconhecidamente delicado.
A morte inesperada do filho mais velho do casal desencadeou toda aquela loucura, entretanto, o homem acreditava que o problema realmente começou no dia em que eles se mudaram para aquele maldito sobrado. Foi o lugar que mudou em caráter definitivo a sorte da família. Mas identificar culpados e procurar por utópicas soluções não adiantava mais. A única saída era a morte.
Orlando dirigia o seu carro na BR-386, mais conhecida como a estrada Tabaí-Canoas, que estava sossegada naquele momento. Mesmo indeciso, ele sabia que vivia os últimos instantes de vida. Ao contrário de Cinara, conseguia raciocinar conscientemente em alguns momentos, mas sua esposa já estava totalmente perdida e dominada pela loucura. Cabia a ele a tarefa de tomar as decisões. A tarde chegava ao fim. O sol vinha direto nos olhos de Orlando, ofuscando-o. O homem percebeu um caminhão se aproximando na pista contrária. Segurou a mão esquerda de Cinara e a alisou.

–Eu te amo – disse ele.

O sol foi encoberto. O Passat estava na sombra do caminhão, que se localizava a menos de vinte metros de distância. Com um rápido, porém, tranquilo movimento de braço, Orlando girou a direção para a esquerda. E a morte deles acabou sendo rápida e indolor.

Notícia publicada no jornal Diário Rio-Grandense do dia 5 de julho de 1992:

CARRO DESGOVERNADO MATA CASAL NA BR-386
Um acidente estranho ocorreu no início da noite de ontem na BR-386, chocando e intrigando os moradores de Nova Santa Rita. Um Passat com placa de Canoas invadiu a pista contrária e se chocou contra um caminhão que vinha de Santa Cruz do Sul. Morreram na colisão o comerciante Orlando Soares Pontes, de trinta e nove anos, e sua esposa, Cinara Selbach Pontes, dona de casa de trinta e quatro. Segundo testemunhas, o Passat vinha em alta velocidade e entrou na contramão repentinamente. Alberto Martini, que dirige caminhões há quinze anos, conseguiu escapar ileso e afirmou não entender o motivo da colisão.
–A pista estava vazia no momento e de repente eu vi aquele carro branco avançando na minha pista. Vinha em uma velocidade muito alta. Eu tentei desviar, mas o Passat entrou bem no meio do caminhão. Por sorte não levei nem arranhão.
Orlando e Cinara recentemente perderam um filho. José Maria Selbach Pontes, de quatorze anos, morreu há menos de um mês. Nenhum dos familiares quis comentar a respeito, mas não pode ser descartada a hipótese do casal ter cometido suicídio. Eles acabam deixando Samuel Selbach Pontes, de cinco meses, órfão. Orlando levou o filho a um local seguro pouco antes do acidente. A criança passa bem, sob os cuidados da avó materna. O enterro de Orlando e Cinara acontecerá hoje no Cemitério São Vicente, em Canoas.
Em off ao repórter do Diário Rio-Grandense, o Senhor Alberto Martini enriqueceu um pouco mais o seu relato:
–A princípio eu pensei que o motorista estivesse dormindo, mas na verdade ele estava com os olhos bem abertos na hora do choque. E isso pode soar incrível, mas consegui identificar uma expressão decidida no rosto dele. Parecia que ele queria morrer. Acho que nunca vou esquecer esta expressão.
Isso foi gravado e reproduzido diante de dezenas de pessoas na redação da publicação. Entretanto, o editor foi prudente e resolveu não levar isso a público.

CAPÍTULO 1

1

O sobrado se localizava no final da Rua Velha, uma estrada de chão toda esburacada que ficava perto da divisa entre as cidades de Canoas e Nova Santa Rita e que parecia ter sido abandonada no tempo. Além da grande casa, a Rua Velha abrigava dois prédios abandonados e alguns casebres. No mais, era acompanhada por uma vasta vegetação campestre. Para chegar ao endereço, era necessário percorrer a BR-386 até encontrar o último posto de gasolina de Canoas. Depois então começava a tal estrada.
Joel Selbach ia até lá no seu Pajero. Estava acompanhado por um construtor civil e seus dois auxiliares principais. Pretendia iniciar o processo da reforma do casarão que pertenceu à sua irmã Cinara no passado. Tinha pressa em agilizar tudo, pois mudar o endereço da família para um local relativamente deserto que ficasse perto da capital era tudo que ele precisava. Apesar de fazer limites com Porto Alegre e ser uma cidade com mais de trezentos mil habitantes, Canoas também contava com espaços territoriais praticamente isolados e escondidos. Para Joel, parecia ideal. Ele, aos quarenta e três anos, era o âncora de um telejornal exibido ao meio dia, além de colunista de uma revista de circulação nacional. Dinheiro felizmente não lhe faltava naquela altura da vida.
Ao sair da BR-386 e entrar na Rua Velha, Joel passou a segurar o volante do carro com as duas mãos. O veículo sacolejava e os cascalhos batiam na parte de baixo da lataria. Já passava das onze da manhã do calorento 15 de abril de 2004. Joel arregaçara as mangas da camisa e tirara o paletó. Sua testa estava oleosa e os olhos ardiam um bocado. Ele parecia ansioso e impaciente, o que ultimamente tornara-se comum. Eram sintomas da doença que os homens das grandes cidades sofrem: stress. O trabalho lhe exigia um desprendimento exaustivo. E ainda tinha as constantes ligações, os problemas com a esposa e os diversos lugares que ele tinha que percorrer durante o dia. Realmente, Joel estava à beira de um colapso. Poderia explodir a qualquer momento.
Após rodar pelos quase quatro quilômetros da Rua Velha, o Pajero parou na frente do sobrado, deixando para trás uma nuvem de poeira. Joel saiu do carro e abriu o cadeado que trancava o portão de madeira. Deu uma olhada para a grande casa e sorriu. Ele estivera ali três vezes nas últimas duas semanas, todavia, era sempre um prazer imenso contemplar o a construção. Entrou novamente no veículo, manobrou-o para dentro do pátio e parou debaixo de uma árvore. Ainda, por trás do volante, contemplou novamente o lugar. Suspirou. Saltou do Pajero e abriu o porta-malas para tirar os instrumentos do construtor.
A casa era de dois andares. O primeiro feito de alvenaria e o segundo de madeira. Fora pintada toda de azul, todavia, já estava desbotada. O aspecto da abandono havia impregnado o local. Ao redor da construção, aquilo que um dia havia sido um gramado se tornara um matagal espesso.
–Este sobrado tem uma boa quilometragem – disse Joel – Foi construído antes da minha irmã se mudar para cá. Já foi uma casa moderna e aconchegante, entretanto, agora não passa de um local com aspecto de mal-assombrado.
–Não pensa em construir outra casa no lugar dessa? - perguntou o construtor.
–Não. Muita coisa no primeiro andar pode ser reaproveitada. Entre destruir e restaurar, fico com a segunda opção.
Pisoteando o matagal com receio de encontrar algum animal peçonhento, Joel chegou até a entrada principal do casarão. Pegou no bolso o molho de chaves e selecionou aquela que servia para a porta da frente. A tranca cedeu sem maiores dificuldades, revelando um lugar que não recebia uma presença humana há vários anos. A claridade da rua manchou o chão repleto de poeira e as paredes tomadas pelo mofo, além das teias de aranha que cortavam o caminho. Uma barata passeava pelo piso de madeira e se escondeu entre as tábuas ao se deparar com os visitantes. Joel sentiu um soturno arrepio ao dar o primeiro passo no interior da casa e ver que o chão deu uma leve tremida. Parou e olhou para trás.
–Pelo jeito, o assoalho é a primeira coisa que precisa ser substituída – disse.
Luiz Carlos, o construtor, assentiu.
–O senhor disse que existe um porão na casa – lembrou.
–Exato. Eu quero que ele seja mantido, assim como as coisas que lá estão.
À esquerda da entrada havia um quarto com uma cama de ferro sem colchão. Mais à frente se localizava o corredor que dava para outros ambientes, além da escada. Joel caminhou por todo o primeiro nível da casa, abrindo as janelas, se deparando com insetos e ratos, confirmando aquilo que já calculara: as paredes poderiam ser mantidas, pois apresentavam um razoável estado de conservação.
–Seu Luiz, as paredes devem ser mantidas – avisou Joel. – Revise-as e troque o reboco se for necessário. Quero extensões do telefone na sala e na cozinha.
O segundo andar do sobrado precisava ser totalmente reconstruído. Assim como no primeiro nível, os ambientes eram muito amplos. Joel pretendia dividir a área e criar uns quatro quartos, além de dois banheiros e uma sala de jogos. O piso parecia tão seguro quanto o do andar de baixo e ass paredes de madeira estavam ligeiramente inclinadas para dentro do casarão. O teto também suscitava receios: o forro não duraria muito, pois algumas tábuas já estavam soltas.
–Como disse anteriormente, aqui em cima vai ser tudo novo – afirmou Joel – Paredes de tijolos e lajes de concreto. Mobilize uma grande equipe, pois tudo precisa ser rápido.
Ele visitara Cinara apenas uma vez, quando a irmã recém se mudara. Não restara na construção muita coisa daquele tempo. Depois que ela e Orlando morreram, praticamente todos os móveis da casa foram vendidos em lojas de usados. Nenhum parente direto quis morar ali nos anos seguintes. Colocaram-na para vender, mas também não surgiram interessados. Embora a casa em si fosse boa, a localização não era das melhores. A decisão de ir morar na Rua Velha havia sido tomada de forma repentina. Procurara a sua mãe e dissera que a mudança para um local isolado era a melhor maneira de acabar com alguns problemas da sua família. Maria José Selbach então lhe dera a chave da antiga propriedade de Cinara dizendo-lhe ficar com ela. Todos os irmãos de Joel estranharam quando ele anunciou a sua mudança para Canoas. Ao contrário dele e da mãe, o resto da família parecia receosa em relação ao sobrado. Achavam estranhas as circunstâncias do suicídio dos antigos moradores e se mostravam inquietos com o fato do filho deles ter morrido no local. Mas Joel não se abatera: ele não era supersticioso, portanto, não acreditava que o sobrado em si tivesse exercido influência sobre as tragédias que ocorreram no passado.
Após observar toda a construção, Joel voltou ao carro e ligou o seu laptop. Abriu o documento que continha o projeto idealizado pelo arquiteto e mostrou para os homens responsáveis pela reforma.

2

O celular de Cristina Selbach tocou exatamente no momento em que dera a partida no Vectra que ganhara do marido no ano passado. Falando no diabo, era o número dele que estava chamando. Ela terminou de colocar o cinto de segurança e conectou o fone de ouvido ao telefone enquanto manobrava o veículo no estacionamento do shopping center.
–Oi amor – disse Cris.
–Oi linda – disse Joel do outro lado da linha. – Ainda vou demorar um pouco aqui em Canoas.
–Acertou tudo com o construtor?
–Acertei sim. Você está no trânsito?
–Estou, mas pode continuar falando. O trânsito está lento.
–Após conversar com os homens que vão botar a mão na passa, fiquei com a certeza de que a nossa casa ficará linda. Tudo isso é por você! Por você e pelas crianças. Quero que nós finalmente reencontremos a felicidade.
Cristina se abalou com aquela manifestação explícita de carinho. Tempos atrás, quando Joel dificilmente era terno, ela não daria importância para este momento sentimentaloide. Mas após o baque que eles sofreram, instantes de ternura causavam uma comoção indescritível.
–Sei disso – respondeu ela, com os lábios trêmulos.
–Bom, vou desligar. Eu te amo, Cris.
Cris fechou os olhos temporariamente, atordoada pelo sentimento de culpa.
–Eu também te amo, Joel – conseguiu responder. – Amo muito.
–Não tenho horário pra chegar em casa. Preciso providenciar algumas coisas antes de voltar para Porto Alegre. Até mais. Beijos.
–Beijo, tchauzinho.
Cristina tirou o fone do ouvido e acompanhou o fluxo de carros, pensativa. As pessoas que a viam consideravam-na uma pessoa cuja vida era cor de rosa. Era uma mulher linda e inteligente. Loira de olhos claros e dona de corpo e sorriso belíssimos. Foi eleita Miss Brasil na década de oitenta e seguiu a carreira de modelo até o nascimento do seu primeiro filho. Participou de algumas telenovelas que engordaram a sua conta bancária e a sua vaidade, porém, descobriu que não levava jeito para aquilo. Depois passou a escrever romances e livros de autoajuda. Era uma personalidade benquista por todas as pessoas, não somente pelos feitos profissionais como também pela simpatia nas aparições públicas. Apesar disso, Cristina, aos quarenta anos, vivia um dos piores momentos da sua vida. Sua mente estava repleta de medos e inseguranças. O problema iniciou no dia em que ela foi sequestrada por um fã maluco e permaneceu em um cárcere privado por algumas semanas. Após o resgate, a esposa da Joel descobriu que a sua vida jamais seria a mesma. Além de traumatizada, ela se tornou incapaz de escrever uma única palavra e seus projetos literários foram interrompidos.
Ironicamente o seu casamento ficou melhor após o sequestro. Joel, que até então se preocupava mais com os seus compromissos profissionais, tornou-se um marido presente e amoroso. Mas a mudança radical acabou despertando nela reações controversas. A óbvia satisfação se mesclava com uma dor na consciência insistente e consistente que poderia ser compreendida somente pela própria Cristina.
No geral, a vida dos Selbachs parecia perfeita, tanto para as pessoas de fora como para eles mesmos. Os desentendimentos eram raros e os pequenos percalços poderiam ser enquadrados como “problemas que acompanham todas as famílias”. Entretanto, Cristina percebia na família uma crise discreta e silenciosa que decorria da falta de sintonia entre todos eles. Ela tinha sérias dúvidas a respeito dela e de Joel serem realmente bons pais. Juliana, a filha mais velha, enfrenta problemas sentimentais graves e não consegue ver nas pessoas que a colocaram no mundo os dois grandes amigos que precisa. Pedro, aos dez anos, sofre de falta de autoconfiança: é inseguro e muito tímido. Recebe da família a certeza de que vai ser amado em qualquer circunstância, entretanto, não encontra nos pais o suporte que o fará mudar e evoluir. Adriana ainda é pequena demais para apresentar grandes problemas, todavia, Cristina também teme pelo seu futuro. As coisas superficialmente soam corretas, pois os problemas são maquiados e a vida segue em frente.
O fato da troca de endereço ocorrer principalmente por sua causa não a deixava chateada. Cristina estava feliz com essa possibilidade. Sair da agitação de Porto Alegre faria bem a todos eles. Talvez a mudança os tornasse novamente unidos e “sintonizados”. Ela precisava se apegar a este otimismo.

3

Pedro e Samuel disputavam uma partida de futebol virtual no videogame novinho em folha que Joel havia dado para o filho no seu último aniversário. Pedro jogava com o Barcelona enquanto Samuel controlava o Milan. Até aquele momento a vitória era de Samuel – três a um. Os dois se encontravam sozinhos no apartamento. Joel estava vendo a casa na qual iriam morar, Cris havia ido ao médico e Juliana fora com Adriana até o mercado.
Samuel, que fora apelidado pelos parentes de “Sam”, era primo-irmão de Pedro. Filho de Cinara Selbach, órfão desde os primeiros meses de vida, acabou sendo criado pela avó e gozou de uma infância razoavelmente tranquila. Aos doze anos, era um garoto autoconfiante e impetuoso que também tinha como característica a discrição que às vezes o fazia ser chamado de autista. Se o pusessem em um cemitério durante a madruga, ele provavelmente dormiria sobre um túmulo se tivesse com sono.
Curiosamente o inseguro Pedro era uma das únicas pessoas que conseguia arrancar de Sam grandes demonstrações de emoção. Porém, o filho de Cinara também ajudava o de Joel. Na companhia do primo, Pedro parecia contagiado pela sua confiança. O entrosamento dos dois vinha sendo tão benéfico que Joel teve a ideia de levar Sam para morar com eles em Canoas por algum tempo. Maria José aceitou a sugestão e os dois garotos explodiram de alegria com a notícia.
Após a partida de videogame, Pedro voltou para o menu inicial do jogo e escolheu a opção “reiniciar a partida”.
–O que você vai levar para casa nova? – perguntou para Sam.
–O tio disse que eu podia levar o que quisesse. Mas vou levar somente as minhas roupas e algumas revistas.
–Vai ser bem legal! – exclamou Pedro.
–Gosta muito da ideia?
–Sim. Você não gosta?
–Gosto – respondeu Sam sem muita animação.
–Parece que não gosta muito.
–Ah, eu não sei – argumentou Sam, indeciso.
–Não quer ir conosco?
–Não. Nada a ver... Eu quero ir sim. Gosto de vocês.
Sam olhou para Pedro com uma expressão confusa.
–É porque teus pais moraram lá? – perguntou Pedro.
Na sequência, ele infantilmente pôs a mão na boca, envergonhado, como se tivesse dito uma grande besteira.
–Não também – respondeu Sam, sem parecer afetado. – Eu nem lembro deles.
Pedro ficou aliviado, apesar da sua dúvida persistir. Resolveu desistir dela. A partida de futebol recomeçou. Eles ficaram em silêncio por alguns minutos. Sam marcou mais um gol.
–Mas você é fraco hein – zombou Sam.
–Também vou apelar para gol de manha – respondeu Pedro.
–Pode apelar.
O filho de Joel contra-atacou, mas o seu centroavante chutou para fora.
–Pedro?
–Fala.
–Tem medo de fantasmas? – perguntou Sam com voz enigmática.
Pedro estremeceu por dentro. O seu primo adorava pegar no seu pé contando histórias assustadoras muito convincentes.
–Não – respondeu Pedro sem um pingo de confiança na própria voz.
–Tem sim.
–Não tenho!
–Claro que tem. Na casa da tia Juracy tem medo de entrar no galpão só por causa das histórias que os primos maiores contam.
–Cale-se!
–Tem medo até da Maria Degolada!
–Que tal se preocupar com o jogo?
Sam se calou. Dois minutos depois recomeçou:
–Se eu fosse você, ficaria preocupado – alertou.
–Por que? – quis saber Pedro.
–Vamos morar na casa onde o meu irmão morreu.
Pedro estranhou.
–Ué! Eu pensei que ele havia morrido no acidente.
–Morreram somente meu pai e minha mãe. Meu irmão José morreu na casa mesmo.
–E como ele morreu?
–Não sei. Isso ele não me contou.
–Quem não te contou?
–José.
Como se tivesse sido beijado no pescoço, Pedro viu sua pele arrepiar-se. Ele instantaneamente imaginou José Maria, seu primo que morrera aos quatorze anos, aparecendo ao lado da cama de Sam, meio cristalino, sussurrando algo em sua voz recheada de eco. Pedro afastou esta imagem da cabeça.
–José morreu – afirmou.
–Eu sei – respondeu Sam. – Mas ele ainda surge para mim. Às vezes parece que ele me visita em sonhos, mas esses sonhos são muito reais.
–Pare de falar isso – clamou Pedro.
–Só estou te avisando. Vamos dormir no mesmo quarto. Se algum dia ele vier me ver, você tem que estar preparado para receber ele também.
–Tá brincando comigo né?
–Não. Nem pense que é mentira, pois os espíritos gostam de aparecer justamente para aqueles que não acreditam.
–Você é um idiota, sabia?
–Deixa de ser cavalo! Eu sei por experiência própria. José precisou me dar muitos sustos até eu aceitar ele.
–Por que você sempre quer me assustar? – questionou Pedro, desesperado. – Tudo que você fala sempre é mentira.
–Desta vez não é. E não se esqueça que aquela casa ainda pertence a ele.
–Não deveria brincar com os mortos, sabia?
–Já disse que não estou brincando. Pedro, você vai ver só! Quando o José vier dar um belo susto em ti, eu não vou te ajudar...
–Não, olha só o que os dois crianções estão falando! – disse Juliana interrompendo a conversa dos dois.
Ela e Adriana entraram no quarto de Pedro. A caçula era a cara da irmã mais velha e ambas eram muito parecidas com a mãe. Igualmente donas de olhos claros, as duas se diferenciavam de Cris somente pela cor dos cabelos, que era castanho-escuro Adriana sentou ao lado de Sam, que sentiu as suas bochechas esquentarem. Não gostava de falar as suas histórias na frente de pessoas mais velhas. Isso fazia ele parecer um imbecil.
–Ninguém merece vocês dois – zombou Juliana. – Você é mesmo um medroso hein, Pedro! Só falta você desanimar o pai na hora da mudança. Cuidem para não assustar a Adri.
–Eu quero jogar videogame – disse Adriana com sua voz fina e delicada.
–Depois – avisou Pedro. – Bem depois.
Juliana saiu do quarto.
–Eu sabia que é mentira – disse Pedro, cantando vitória.
–E você acha que ela sabe dessas coisas? – indagou Sam. – você é ingênuo mesmo... Quando José aparecer, ele vai encontrar apenas nós dois.
Sam olhou para Pedro com escárnio. Apesar de ser adepto daquelas brincadeiras, ele era prudente e tentava não extrapolar. Ele costumava sentir algumas coisas de verdade. Somente brincava a respeito com Pedro, pois Pedro era o tipo de garoto que pedia este tipo de provocação. Era engraçado vê-lo amedrontado. Tão engraçado que Sam se dava ao direito de avançar um pouco o sinal.
Porém, o que parecia uma brincadeira perversa também era uma lição. Sam pretendia divertir-se e ao mesmo tempo tirar de Pedro uma boa parte dos seus temores. Independente de ele sentir ou não alguma coisa no casarão, idealizava algumas brincadeiras que apavorariam e posteriormente encorajariam o seu primo preferido. Este precisava enfrentar algumas coisas que o metessem medo de verdade.

4

Joel chegou em casa no final do dia 15 de abril sentindo um enorme cansaço. Havia se estressado demais com os problemas do sobrado. Correu atrás dos materiais pedidos pela equipe de Luiz Carlos e providenciou com a companhia de energia elétrica o fornecimento para o sobrado. Encontrou mais problemas e gastos do que imaginava, mas pelo menos esta correria valera alguma coisa. A reforma começaria no dia seguinte, e poderiam se mudar para o sobrado dentro de setenta dias, ou menos.
Após o jantar, Joel tomou um belo banho. Sentiu uma ligeira e deliciosa sensação de enfraquecimento quando o jato de água caiu no seu corpo exausto. Depois ficou parado debaixo da ducha, recapitulando as suas próximas providências..
Cristina o esperava na cama, vestindo uma camisola lilás. Ela já havia tomado o seu banho e agora lia uma revista. Joel saiu do banheiro gemendo enquanto caminhava. Suas juntas estavam desacostumadas com os exercícios praticados durante aquele dia. O seu trabalho não exigia esforço físico. Antigamente ele fazia academia, mas acabou desistindo. Como consequência, teve cinco quilos a mais registrados na balança e o protesto de suas pernas quando tinha que ficar bastante tempo em pé ou caminhando.
–Esgotado? – interessou-se Cris.
–Totalmente – respondeu Joel.
Ele tirou o roupão e vestiu uma cueca. Cris colocou a revista ao lado do abajur e se acomodou debaixo do lençol. O quarto estava na penumbra. Joel foi até o seu lado da cama e acertou o horário do despertador no rádio relógio. Depois se deitou.
–Estou moído – disse ele. – Mas pelo menos eu já acertei tudo. Agora a reforma está nas mãos do Senhor Luiz Carlos.
–Ficou tudo certinho mesmo?
–Oh, sim. Vou ir até Canoas umas duas vezes por semana para ver como estão as coisas, mas agora é tudo com eles. O Luiz é de confiança; já sabe como eu quero que fique.
–Até que foi rápido, não é mesmo?
–É. Por sorte guardamos um bom dinheiro para poder acelerar a obra.
Pode ter certeza que a construção é muito boa, e vai ficar mil vezes melhor. Além de confortável, a casa será muito segura. Vou instalar câmeras e pouquíssimas pessoas vão saber do nosso novo endereço.
Cris encostou a sua cabeça no ombro de Joel e o abraçou.
–Amor, eu estou muito feliz – disse.
–Que bom! - exclamou Joel. – Esta casa é um presente para você. Após o sequestro, a melhor solução é se afastar das pessoas e da imprensa.
Subitamente ela precisou repetir aquela frase que sempre repetia.
–O trauma do sequestro vai passar.
–Eu sei que vai, meu amor. Eu também fiquei assustado. Ir para um lugar deserto vai nos dar tranquilidade. Isso vale para nossos filhos também. Não estamos saindo somente por causa do teu abalo emocional. Nem pense nisso.
–Já conseguiu acertar o adiantamento das férias?
–Sim. No nosso primeiro mês na casa nova estarei de férias da TV. Precisarei apenas escrever para as outras publicações. Ficarei em função do computador e da Internet, mas só o fato de não precisar ir e voltar a Porto Alegre já ajuda.
–E fica bem pertinho de tudo, não é mesmo?
–Claro. Tem um baita supermercado perto da entrada da Tabaí. O shopping também não é longe. Bem como planejamos. Casa em um lugar afastado, mas perto da capital. Quase ninguém passa por ali.
–Isso é ótimo.
–Falta apenas arranjar a escola para as crianças. Têm duas instituições muito boas perto da estação de trem. Amanhã podemos entrar no site delas para saber um pouco mais. Já a Juliana eu posso levar na faculdade tranquilamente.
–Ótimo.
Cris esticou-se na cama e pegou o controle remoto que estava atirado no chão. Ligou no Jornal da Globo. Enquanto o apresentador chamava os gols da rodada da Copa do Brasil, Cris se pôs sentada na cama, pensativa.
–Naquela casa o filho da Cinara morreu – disse ela, intrigada.
–Isso não interfere em nada – respondeu Joel.
–Talvez. É bom que Pedro não saiba disso.
–Nunca falamos sobre isso na frente dele. Pedro pensa que a família da minha irmã morreu no acidente. Não sabe que Cinara e Orlando se mataram, e pensa que José estava com eles. Essa foi a versão que todos os jovens da família sabem, inclusive os nossos jovens.
–Falamos pouco sobre isso, mas Juliana sabe que José morreu ali. Sam deve saber com certeza. Ele pode contar para Pedro.
–Também não é nenhum bicho de sete cabeças, Cris. Pedro não é tão covarde assim. Basta administrarmos bem a cabecinha dele.
–Sei não. Samuel é o oposto. Bem que ele pode querer pregar uma peça em Pedro, assustando-o.
–Teremos que administrar, meu bem – insistiu Joel, despreocupado.
Cris deitou novamente, encostando a cabeça lentamente no travesseiro. Ele notou que a esposa estava apreensiva.
–Algo mais? – perguntou Joel com voz doce.
–Não.
Ele tocou o rosto de Cris, girando-o até que pudesse encará-lo.
–Me fala – pediu Joel.
–Ai, agora eu me peguei pensando na morte de José e dos seus pais.
–Cris, você nunca foi ligada a este tipo de superstição – disse em um tom de voz um tanto acusador.
–Eu só estou pensando na possibilidade de Pedro saber detalhes da morte do primo morto. Eu conheço o Sam. Ele vai contar...
–Tem medo de se impressionar também?
–Um jovem morreu ali. O ar da casa deve estar carregado.
Joel ficou surpreso.
–Cris, eu fiquei com a casa porque sabia que você não se importava com este tipo de coisa. Não vai me dizer que está impressionada.
Cristina ficou sem palavras.
–Não...quer dizer...me desculpe Joel! É apenas reflexo do que aconteceu comigo.
–A casa não tem nada demais. Minha mãe já passou a noite lá e nunca sentiu nada.
–Alguns irmãos teus dizem que a casa é estranha. Que foi a casa que fez com que Cinara e o marido se matassem.
–Eles não passam de um bando de religiosos fanáticos e supersticiosos. Isso que eles são! Orlando se jogou na frente daquele caminhão, com o consentimento de Cinara, por causa da dor que eles sentiram. Não tem nada a ver com a casa. Amor, se você quiser, dou um jeito de voltar atrás.
–Não precisa, Joel. Desculpe-me. Só pensei nisso agora por causa de Pedro. A casa será reformada. Ficará linda, moderna e perfeita para a gente. Estou louca para ver ela pronta.
–Tem certeza?
–Claro! Quero ela pronta.
–Dentro de pouco tempo, meu amor.
Joel deu um beijo na esposa e sentiu que a apreensão dela havia sumido. Ele se acomodou debaixo dos lençóis. Usou sua mão para encontrar a pele macia de Cristina.
–Te amo, Cris – sussurrou ele.
–Também te amo – suspirou ela.
–Perfeita! Te amo, te amo...
Os dois se entregaram ao ardor do ato sexual. O seu sabor não foi tão doce quanto o daqueles que aconteceram antes do sequestro. Alguma coisa havia mudado em Cris, e Joel faria de tudo para descobrir o que era quando eles chegassem ao novo lar.

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